A metonímia


A figura dá aceleração ao sentido do que se expressa, criando uma extensão do sentido de um termo a outro.
Por José Luiz Fiorin

Castro Alves, traduz assim uma estrofe de um poema de Victor Hugo, intitulado “A Olímpio”:

A nuvem carregada, espanto do marujo,
Que a vela mal abriga,
Para o trabalhador, que vê crestado o campo,
             É o saco da espiga.

           Temos uma afirmação não pertinente neste estrofe “a nuvem carregada, espanto do marujo, é o saco da espiga para o trabalhador”. Qual é o mecanismo para estabelecer a propriedade semântica dessa frase? O termo “nuvem carregada” é causa da “chuva”; o “saco da espiga” é o efeito da “boa colheita”. A compatibilidade semântica se dá, quando percebemos o significado  da frase: a chuva propicia boa colheita para o trabalhador. Os traços do efeito (a chuva) transitam para a sua causa (nuvem carregada) e os da causa (colheita) transferem-se para o seu efeito (saco da espiga).
           A metonímia é uma difusão semântica. No eixo da extensão, um valor semântico transfere-se a outro, num espalhamento sêmico. Com isso, no eixo da intensidade, da uma velocidade maior ao sentido, acelerando-o, pois ao enunciar, por exemplo, um efeito, já se enuncia também a causa, suprimindo etapas enunciativas. Ao dar ao sentido aceleração, a metonímia tem um valor argumentativo muito forte.


Contiguidade

O que estabelece uma compatibilidade entre os dois sentidos é uma contiguidade, ou seja, uma proximidade, uma vizinhança, um contato. Assim, são metonímicas as compatibilidades de causa e efeito (ganhar a vida com o suor de seu rosto), instrumento e autor (Ele é um bom garfo), continente e conteúdo (Bebeu só um copo), lugar e objeto que o caracteriza (Tomou um cálice de Porto), símbolo e aquilo que simboliza (Ele é a ancora da família), coisa e ser que ela caracteriza (Esta festa está cheia de cuecas), autor e obra (Leu os pré-socráticos), marca e produto (Comprou um pacote de gilete), abstrato e concreto (É preciso respeitar a velhice; ele ficou com os louros), etc. metonímia, em grego, significa “além do nome, o que sucede o nome”. A metonímia é, pois, o tropo em que se estabelece uma compatibilidade predicativa por contiguidade, aumentando a extensão sêmica com a transferência de valores semânticos de um para outro dos elementos coexistentes e aumentando sua aceleração com a supressão de etapas de sentido.
A sinédoque é um tipo de metonímia em que a relação de contiguidade é do tipo pars pro totó (parte pelo todo), o que significa que a transferência sêmica se faz entre dois sentidos que constituem um todo. Sinédoque, em grego, quer dizer “compreensão simultânea”, ou seja, o que apresenta traços que coocorrem necessariamente num significado. Assim, podemos dizer que são sinédoques a coexistência de parte e todo (Os sem-teto ocuparam um prédio abandonado; tem olhos azuis); matéria e objeto (Na batalha, ouvia-se o ruído do ferro); singular e plural (O brasileiro é, em geral, simpático), gênero e espécie (Os mortais tem sempre uma angustia existencial; em casa onde falta pão, todos falam e ninguém tem razão), etc.
Uma espécie de sinédoque é a antonomásia, em que se transfere o valor de semântico de um nome próprio para um nome comum, que contém uma característica que marca o nome próprio (o Estagirita para designar Aristoteles; o apostolo dos gentios para denominar São Paulo; o mestre do suspense para Alfred Hitchcock) ou se designa, num processo de transferência semântica, com um nome próprio, a totalidade dos indivíduos que tem uma dada característica (Era um Casanova=um conquistador).
Pensa-se que a metonímica tem apenas a dimensão de uma palavra ou quando muito de um sintagma. Por exemplo: Manda equipar batéis, que ir ver queria/Os lenhos em que o Gama navegava (Os Lusíadas, VII, 73). Lenho é a madeira de que são feitos os barcos, e por isso, no texto tem esse significado. No entanto, com metonímias podem-se construir textos, que constituem uma totalidade metonímica. No texto abaixo, fragmento do capitulo VI de O Ateneu, de Raul Pompeia, fala-se do tipo de eloquência que se praticava no Grêmio da escola e aqui Cícero significa orador:

Ateneu

“A eloquência representava-se no Grêmio por uma porção de categorias. Cicero tragédia – voz cavernosa, gestos de punhal, que parece clamar de dentro do tumulo,           que arrepia os cabelos do auditório, franzindo com a fereza o sobrolho, que, se a retorica fosse suscetível de assinatura, acrescentaria ao fim de cada discurso pesadamente: a mão do finado; Cícero modéstia – formulando excelentes coisas, atrapalhadamente, no embaraço de um perpetuo début, desculpando-se muito em todos os exórdios e ainda mais em todas as confirmações, lagrimas na voz, dificuldade no modo, seleto e engasgado; Cicero circunspecção – enunciando-se por  frases cortadas  como quem encarreira tijolos, homem da regra e da legalidade, calcando os que e os cujo, longo, demorado, caprichoso em mostrar-se mais raso do que o muito que realmente é, amigo dos períodos quadrados e vazios como caixões, atenuando mais em cada conceito a atenuante do conceito anterior, conservador e ultramontano, porque as coisas estabelecidas dispensam de pensar, apologista ferrenho de Quintiliano, retardando com intervalos o discurso impossível para provar que divide bem a sua elocução, com todos os requisitos da oratória, pureza, clareza, correção, precisão, menos uma coisa -  a ideia; Cicero tempestade – verborrágico, por paus e pro pedras, precipitando-se pela fluência como escadas abaixo, acumulando avalanches como uma liquidação boreal do inverno, anulando o efeito de assombroso destampatório pelo assombro do destampatório seguinte, eloquência suada, ofegante, desgrenhada, ensurdecedora, pontuada a morrus como uma cena de pugilato; Cicero franqueza – positivo, indispensável para o encerramento das discussões, dizendo a coisa em duas palavras, em geral grosseiro e malfalante, pronto para oferecer ao adversário o encontro em qualquer terreno,  espécie perigosa nas assembleias; Cicero sacerdócio – sacerdotal, solene, orando em trêmulo, alçando a testa como uma mitra, pedindo uma catedral para cada preposição, calçando aos pés dois púlpitos em vez de sapatos, espécie venerada e acatada.
Nearco introduziu o tipo ausente do Cícero penetração – incisivo, fanhoso e implicante, gesticulando com a mãozinha à altura da cara e o indicador em croque, marcando precisamente no ar, no soalho, na palma da outra mão, o lugar de cada coisa que diz, mesmo que se não perceba, pasmando de não ser entendido, impacientando-se até ao desejo de vazar os olhos ao público com as pontas da sua clareza, ou derreando-se  em frouxos de compaixão pela desgraça do nos não compreendermos, porcos e perolas.

Finalmente, cabe lembrar que a metonímia não um tropo apenas da linguagem verbal; vai aparecer também em outras linguagens, como a visual, por exemplo. As indicações de lugares em placas são, em geral, metonímicas: os talheres significam restaurante: uma taça quer dizer bar, uma ducha tem o sentido lugar onde se pode tomar banho. No quadro “La Belle” de René Megritte, as folhas significavam árvores. 

JOSÉ LUIZ FIORIN  E PROFESSORES DO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA DA USP E AUTOR DE AS ASTÚCIAS DA ENUNCIAÇÃO

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